Carta Aberta

Caso Paulo Lício Geus

 

Recentemente tornou-se público o Relatório n° 4546344/2024 da Polícia Federal que apura a constituição de uma organização criminosa e coordenada que visava a consumação de um Golpe de Estado e da Abolição do Estado Democrático de Direito. Com isso, a comunidade da computação e de toda a Unicamp foi surpreendida com um fato extremamente preocupante: o professor Paulo Lício de Geus, docente do Instituto de Computação da Unicamp e pesquisador na área de redes de computadores e segurança computacional, é mencionado diversas vezes nesse relatório, menções que sugerem que Paulo Lício compunha o “Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral” do grupo citado e mantinha contato direto com suas lideranças. Segundo o relatório, a troca de mensagens em que o professor participa ratifica a atuação coordenada dos membros da organização para propagarem notícias falsas sobre as urnas eletrônicas, no sentido de incitar a população contra o resultado das eleições presidenciais de 2022 [1](pgs 188-194).

A polícia apontou pelo menos duas participações de Paulo Lício: fornecimento direto de informações às pessoas encarregadas de disseminação de informações falsas; e participação na elaboração e revisão de um relatório divulgado pelo Partido Liberal que visava invalidar as eleições[2]. Pesquisadores da USP e área técnica do TSE apontaram alegações infundadas e falta de rigor técnico no relatório do PL [3][4] e posteriormente, declarou-se potencial conhecimento da falta de validade das informações propagadas, e ainda assim cumplicidade em propagá-las, como a questionável afirmação de Paulo de Lício de que “[...] no mundo da política não existem certezas, apenas oportunidades.”[1](págs 151-214).

A reitoria da Unicamp já se posicionou sobre o assunto com uma nota pública [5] lamentando que um membro da nossa comunidade possa estar envolvido na disseminação de notícias falsas sobre processo eleitoral, reafirmando seu compromisso com o Estado Democrático de Direito e repudiando tentativa golpista. Por um lado, elogiamos a atitude da reitoria, pois nos constrange até então o silêncio da diretoria do Instituto da Computação sobre o assunto, mas, por outro lado, enfatizamos que apenas se pronunciar e acompanhar a investigação da Polícia Federal não é o suficiente, é necessário abrir um processo de sindicância para inquirir sobre as ações de Paulo Lício enquanto funcionário público. 

Na Unicamp, apesar da proximidade e complacência  da reitoria de Zeferino Vaz com o alto escalão militar na ditadura de 1964, carregamos conosco um grande histórico de luta contra o autoritarismo desse regime, pelas liberdades democráticas e a justiça social. Tomem como exemplo, o papel da resistência da comunidade acadêmica da Unicamp contra os processos de aparelhamento ideológico da ditadura pela “modernização conservadora” e na luta em 1981 pela autonomia universitária como parte do avanço da democracia e qualidade desta instituição. Relembramos os nomes de Paulo Freire, Antônio Cândido, Maurício Tragtenberg, Maria da Conceição Tavares, Ademir Gebara e Alcides Mamizuka como figuras críticas à ditadura e símbolos de resistência às torturas. Docentes e discentes (alguns se formaram e hoje compõem o corpo docente) sofreram em porões da ditadura porque lutaram para que hoje pudéssemos viver e produzir ciência em um Estado Democrático de Direito [6].

Uma comunidade acadêmica com um histórico como esse não pode ter espaço para aqueles que atentam contra a democracia. Não podemos aceitar as denúncias feitas pelo inquérito como algo natural, devemos tratar com a seriedade que esse caso nos exige. Nosso corpo docente, composto por grandes nomes, de pessoas compromissadas com a legitimidade das nossas ações, não pode aceitar a possibilidade de ter um colega conspirando contra a democracia brasileira. Nosso corpo discente não deve ter como professor, orientador, uma pessoa que ao invés de agir como guia, como uma referência para pesquisa, age contra a ciência e os valores da comunidade acadêmica. 

O corpo administrativo desta universidade não pode receber de maneira complacente as denúncias desse inquérito, sem abrir uma sindicância para averiguação dos fatos e responsabilização do professor pelos seus atos.

Outro ponto relevante a considerarmos é que Paulo Lício é servidor público, docente e pesquisador na Unicamp, suas ações representam a universidade e o IC. Se ele realmente foi conivente com a disseminação de notícias falsas a respeito de um tema diretamente ligado com a sua área de pesquisa, isso implica em uma deterioração da imagem de toda uma comunidade acadêmica e científica perante a sociedade. Infelizmente não podemos sequer dizer que este seria um caso isolado na conduta do professor, dado que este já propagou publicações como ‘How Do Vaccines Cause Autism’ em suas redes sociais e já defendeu posições anti científicas sobre políticas de cotas e o uso da Linguagem Neutra. Diante desse tipo de situação precisamos destacar a responsabilidade social da Unicamp com o conhecimento científico e principalmente com a pesquisa realizada pelos seus funcionários, preocupando-se com o impacto que elas podem trazer para a sociedade.

Além disso, dado que o relatório aponta que o professor teve atuação profissional, precisamos averiguar se não houve violação da exclusividade da prestação de seus serviços e uso da infraestrutura da universidade pública para fins inadequados. Isso por si só já seriam motivos suficientes para que uma sindicância seja aberta, mas a comunidade discente também gostaria de trazer à luz que na disciplina "MC861* - Projeto em Computação II", ministrada por Paulo Lício, um grupo de alunos realizou um projeto cuja proposta era de “desenvolver um sistema de coleta de dados eleitorais do TSE para efetuar fiscalização de resultados e auditoria do funcionamento das urnas eletrônicas”. Na disciplina, o grupo utilizava dados fornecidos por terceiros, em que continham o nome "Gabriel" (mesmo nome que aparece nas mensagens de Paulo Lício no inquérito como o dono dos logs)[1](189).

Note também que Paulo Lício afirma ter trabalhado no Instituto Voto Legal (IVL) em 2022 [8], mesmo período de formulação do relatório produzido pelo IVL e divulgado pelo PL [2], assim como afirma por mensagens de texto: "VCN [Valdemar da Costa Neto] acaba de divulgar o rel técnico [...] que geramos ontem" [1](pág 193), 4 dias depois da liberação de tal relatório por Valdemar. Também é sabido que os dados utilizados na pesquisa do relatório do PL (logs de urna) têm um grande volume [9], não sendo facilmente analisados em computadores pessoais. De tal modo, resta a dúvida se os servidores do IC e/ou Unicamp, foram utilizados para a geração de análises que compuseram tal relatório. Portanto, requer seja esclarecido e evidenciada a utilização ou não de servidores da universidade a fim da análise e elaboração de relatórios com finalidade golpista.

Em função destes fatos e pelas suspeitas levantadas no inquérito, gostaríamos de relembrar alguns deveres e proibições: garantir que as pesquisas realizadas em dependências da Unicamp tenha sua finalidade fiel aos objetivos comuns da Unicamp, manter conduta moral e respeito às normas legais, desempenhar suas funções com zelo, diligência e honestidade, garantir que nenhum recurso material ou humano seja empregado a fins particulares, garantir que não houve proveito de sua posição de servidor para lograr qualquer proveito ou coagir subordinados [7](artigo 163, incisos I à III, artigo 164, incisos III, V, VIII à X, do Estatuto do Servidor Público da Unicamp). Assim, esperamos que fique claro que a reitoria da Unicamp e a diretoria do IC prevaricam se não usarem de todos os meios legais para investigar o caso, visto que haveria negligência por parte da Universidade em realizar apenas uma nota de repúdio sem averiguações reais do ocorrido [10](art. 319 do Código Penal brasileiro). Exigimos, portanto, que os responsáveis por essas instâncias conduzam a abertura de uma sindicância com a seriedade e urgência que a situação exige. 

Finalmente, ressaltamos que uma tentativa de Abolição do Estado Democrático de Direito ataca diretamente os princípios basilares da Universidade, um ataque às liberdades democráticas é um ataque à Universidade em si e à sua comunidade. Este caso deve servir para reafirmarmos o nosso compromisso na batalha pela democracia que se faz necessária nos dias de hoje diante dos atuais avanços da extrema-direita e na luta por uma universidade diversa, ampla, segura, anticapacitista, antirracista e antifascista. É impossível agir como se as manifestações da extrema-direita se resumissem apenas aos atentados em Brasília, elas também se fazem presentes e devem ser enfrentadas no campus e nos espaços onde convivem a nossa comunidade,  como, por exemplo, o ataque do ex-professor do IMECC Rafael Leão, os ataques de grupos fascistas em frente a moradia estudantil e as pichações transfóbicas ou com simbologia fascista pela Unicamp. Devemos estar atentos e agirmos de acordo com a nossa tradição de luta.

Por isso, os centros acadêmicos, entidades estudantis, coletivos e organizações que assinam esta carta se reúnem em torno dessa denúncia e defendem que os indícios apresentados no relatório [1] não apenas sugerem uma possibilidade de violação jurídica, como também fornece dúvidas quanto à fidelidade de Paulo Lício ao Estatuto do Servidor Público da Unicamp e que recai, portanto, sob a responsabilidade da diretoria do IC e da reitoria da Unicamp, averiguar o cumprimento pleno do estatuto pelo servidor.

 

Lista de Assinaturas:

 

Representações Estudantis

DCE - Diretório Central dos Estudantes da UNICAMP 

APG - Associação de Pós-Graduandos da Unicamp

CACo - Centro Acadêmico da Computação da Unicamp

CAFEA - Centro Acadêmico da Faculdade de Engenharia de Alimentos Unicamp

CAAL - Centro Acadêmico Adolfo Lutz da Unicamp

CACH - Centro Acadêmico das Ciências Humanas da Unicamp

CAFIL - Centro Acadêmico da Filosofia Unicamp

CAEFIS - Centro Acadêmico dos Estudantes de Formação Interdisciplinar Superior da Unicamp

CAF - Centro Acadêmico de Física da Unicamp

CACAU - Centro Acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unicamp

CAMAB - Centro Acadêmico Maria Cristina Faber Boog da Unicamp

CAE - Centro Acadêmico de Enfermagem da Unicamp

CAECO - Centro Acadêmico da Economia Maria da Conceição Tavares da Unicamp

CAMECC - Centro Acadêmico dos Estudantes do IMECC

CAIA - Centro Acadêmico do Instituto de Artes da Unicamp

CAL - Centro Acadêmico da Linguagem da Unicamp

CAEM - Centro Acadêmico Enedina Marques

CAGEAC - Centro Acadêmico de Geologia Asit Choudhuri da Unicamp

CAFARMA - Centro Acadêmico de Farmácia da Unicamp

Diretório Central dos Estudantes da UNIVESP

Diretório Acadêmico Manuel Bandeira (UNESP)

CAFCA - Centro Acadêmico Flávio de Carvalho de Unesp Bauru

 

Coletivos, movimentos estudantis, sindicatos

Movimento Correnteza

Afronte!

Movimento de Mulheres Olga Benario

UJC - União da Juventude Comunista

NCT - Núcleo de consciência trans da Unicamp

STU - Sindicato dos trabalhadores da Unicamp

PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

Frente pró-Banheiros Neutros da Unicamp

CoAAD - Coletivo Anticapacitista Adriana Dias

Uniao Preta

AINU - Coletivo dos Acadêmicos Indígenas da Unicamp

Coletivo Juntos!

Coletivo Marsha pelo Orgulho

Coletivo Dinamo de Engenharia Popular

GEEU - Grupo de Escalada Esportiva Unicamp

Coletivo Anura 

NCN - Núcleo de Consciência Negra

Comitê Unicamp de Solidariedade ao Povo Palestino

 

Entidades Estudantis do Instituto de Computação

LKCAMP - Linux Kernel Unicamp

AAACEC - Associação Atlética Acadêmica da Ciência e Engenharia de Computação

Iris Data Science Unicamp

ENIGMA

Ominira

Embarcações

 

Referências:

[1] Relatório N° 4546344/2024 integral da Polícia Federal

http://s3.glbimg.com/v1/AUTH_8b29beb0cbe247a296f902be2fe084b6/2024/html/politica/golpe-de-estado/relatorio-final-pf-golpe.pdf

[2] "Relatório Técnico - Logs Inválidos das Urnas Eletrônicas Fiscalização das Eleições de 2022 no TSE" publicado pelo Partido Liberal:
https://cdn.oantagonista.com/uploads/2022/11/PL-Relatorio-Tecnico-Logs-Invalidos-das-Urnas-Eletronicas-v0.7-15-11-2022.pdf

[3] Pesquisadores da USP sobre relatório apresentado pelo PL

https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Dezembro/pesquisadores-da-usp-e-parceiros-apontam-alegacoes-infundadas-e-falta-de-rigor-tecnico-em-documentos-do-pl

[4] Parecer técnico do TSE sobre relatório apresentado pelo PL:
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/area-tecnica-do-tse-lista-falhas-na-argumentacao-do-pl-sobre-urnas/

[5] Nota de repúdio da reitoria sobre o caso: 

https://unicamp.br/noticias/2024/11/28/reitoria-da-unicamp-reafirma-compromisso-com-a-democracia/

[6] Comissão da Verdade, "A Unicamp NÃO FOI UMA ILHA: POR UMA COMISSÃO DA VERDADE E MEMÓRIA.", Caio N. de Toledo

https://comissaoverdade.gr.Unicamp.br/wp-content/uploads/sites/11/2014/03/140319_cvu_artigo_prof_caio_toledo.pdf

[7] Estatuto do Servidor Unicamp:

https://Unicamp.br/Unicamp/sites/default/files/informacao/esUnicamp.pdf

[8] Currículo Lattes de Paulo Lício, acessado em 02.12.2024

http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4781254J5

[9] Logs e ferramentas necessárias para o tratamento

https://dadosabertos.tse.jus.br/dataset/resultados-2022-arquivos-transmitidos-para-totalizacao

[10] Crime de prevaricação (art. 319 do Código Penal brasileiro)

https://jus.com.br/artigos/103942/crime-de-prevaricacao-ar-319-do-codigo-penal-brasileiro

 

*Errata - Previamente o código foi escrito como MC865 nesta carta, código esse inexistente, posteriormente corrigido para MC861, o código correto referente à disciplina ministrada.

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